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"Escrever um conto, sorrir para a vida"

O Plano Nacional de Leitura, a Rede de Bibliotecas Escolares, a Direção Geral da Saúde e a Ordem dos Médicos Dentistas, laçaram o concurso de escrita de contos com o mote "Escrever um conto, sorrir para a vida", pretendendo motivar a escrita, a leitura e a criatividade, sensibilizando, ao mesmo tempo, para a saúde oral.
Os melhores trabalhos integraram uma Antologia de Contos cujo lançamento teve lugar numa cerimónia comemorativa do Dia Mundial da Saúde Oral, a 20 de março de 2015. Esta antologia está a ser distribuída em todas as bibliotecas escolares do país.
Ora, é com imenso prazer que a equipa da Biblioteca Escolar anuncia que o trabalho levado a concurso por esta escola foi selecionado para integrar a referida antologia. O conto em questão tem por título “A Vizinha do 6ºB” e é da autoria da aluna Ana Santos, do 10ºA.
Muitos parabéns à vencedora!
Não deixem de ler:


A vizinha do 6º B

                                                     “Daí ela lembrou-se de como é ser forte. Ela enxugou as suas lágrimas e sorriu. Sim, sorriu, porque ela sabe que algo melhor está por vir. Ela sabe.”
Tati Bernardi

            Todas as segundas-feiras, a vizinha do 6º B saía de casa às 6 horas, transportando consigo um saco de livros. Eu observava o seu ar apressado, quando deixava o prédio e caminhava em ritmo acelerado pela rua fora. Onde iria? Que livros transportaria? A quem iria entregar os livros? Quem seria, afinal, aquela mulher tão misteriosa?

            Havia já meses em que a via sair assim de casa, naquele jeito tão particular de andar! Um caminhar belíssimo, sublime, de uma fulgência cujo encanto as palavras não podem exprimir, mas só os olhos podem captar. Como era bela aquela mulher! E como era belo o seu modo de andar!

Quis segui-la. Sabia que não o deveria fazer, contudo não consegui encerrar, em mim, toda a curiosidade que me assaltava sempre que aquela mulher cruzava o meu olhar, sorrindo, e acompanhei-a. Percorremos ruas e avenidas, por entre multidões barulhentas e velozes, mas que, para mim, eram só vultos mudos já que o meu pensamento se distanciava de tudo o que me rodeava. Naquele momento, eu só pensava no quão radioso era o seu sorriso, na rapidez do seu andar e tentava acompanha-la, para não a perder de vista. Entrou num enorme edifício e eu assim o fiz também.

Subitamente deparei-me com uma imensidão de crianças, cujas faces tão frágeis carregavam já o peso da doença. As crianças esperavam ansiosas pela sua visita e, depois de muitos sorrisos calorosos trocados, ouviam, deliciadas, a doce voz daquela mulher quando ela, num tom quente de expressão sorridente acolhedora lhes dizia “Era uma vez…”.

As suas palavras eram como um abraço apertadinho, luminoso, que as levava ao colo para um mundo onde a palavra “doença” era inexistente. Respirava-se um ar repleto de alegria, salpicado de preocupação. Um sorriso rasgava-se em cada criança, e de vez em quando ouviam-se gargalhadas pequeninas e sinceras como as próprias crianças. Elas riam verdadeiramente para a vida como nenhum de nós sabe fazê-lo, com ingenuidade, incredulamente em relação ao grotesco que as circundava. Porque aqueles sorrisos eram puros e inocentes, mas acima de tudo eram necessários, porque, naquelas circunstâncias, cada um poderia ser o último, tornando - se urgente e essencial.

De súbito ela ficou imóvel e um ajuntamento de médicos lançou-se sobre uma pequena menina que, ali, se encontrava e a agonia e o pânico instalaram-se. Ela ficou ali, como que petrificada e nada a fazia sair daquele transe. Nem os gritos, nem os choros, nem mesmo os múltiplos empurrões de que foi alvo.

Não quis mais ficar ali e saí. O meu coração batia, acelerado como era o andar da vizinha do 6º B. Hesitei entre ir embora ou ficar. Não desisti do meu intento. Não podia ir para casa e fingir que nada se tinha passado! Estaria a enganar-me a mim própria.

Horas depois, a mulher saía daquele hospital, com as palavras do médico e os gritos de desespero da mãe a ecoarem. Aquelas vozes não lhe saíam da cabeça e as lágrimas escorriam-lhe, pesadas, pelo rosto pálido.

No dia seguinte, não a vi, nem na semana seguinte. Sentia a falta dela e do seu andar apressado, do riso partilhado que ecoava ainda em mim, no silêncio daquele prédio. Certamente que as crianças também sentiriam saudades. Esperei pacientemente pelo dia em que voltaria a ouvir os seus passos, que tornaria a deliciar-me com o seu sorriso. Ansiava pelo momento em que a normalidade se instalaria de novo.

Dias depois voltei àquele lugar, esperando vê-la. Ainda olhava em meu redor, procurando-a, quando uma menina me questionou se ela voltaria. Percebi, então, que desde aquele incidente, não tivera coragem de regressar. Compreendi a sua incapacidade de voltar a entrar naquele espaço onde tão trágico acidente acontecera e de enfrentar todos aqueles rostos outra vez.

Quando cheguei a casa, tive vontade de ir bater à sua porta, e explicar-lhe que a sua presença era necessária, que todos estavam indubitavelmente entristecidos com a sua ausência e que todos precisavam das suas histórias e dos sorrisos juvenis (sim, sorrisos que pareciam de menina, de uma brancura cintilante) envolventes a ela associados.

Mas o destino encarregou-se disso e houve um dia em que os passos alegres de uma criança encheram aquele espaço. Era uma das suas pequenas ouvintes que veio, pela mão do seu pai, chamar a leitora desaparecida.

Não sei que palavras disseram, nem quantas lágrimas derramaram, nem quantos sorrisos de cumplicidade trocaram. Calculo, porém, que aquele pequenino ser lhe tenha vindo agradecer toda a alegria e felicidade trazida, todos os momentos de amor, todos os carinhos, todos os sorrisos partilhados.

Talvez isso fosse o que eu lhe quereria também dizer. Depois de ter voltado ao lugar onde tudo aconteceu, e de, aí, ser questionada por aquela pequena criatura sobre a sua ausência, percebi a importância que aquela mulher tinha para todas aquelas crianças que, semanalmente a ouviam com atenção. Senti que lhe devia esse agradecimento, não só por ter feito sorrir muitas crianças, mas por me ter dado a conhecer aquele mundo, até então desconhecido.

Aquela mulher começara por ser só a vizinha misteriosa do 6º B que eu decidi seguir, um dia. Agora, ela tinha-se tornado numa heroína que vivia ainda no anonimato. Talvez ainda não se tivesse apercebido de que o era. Talvez só o pudesse ser por ser humilde e essa simplicidade a impedisse de se mostrar ao mundo. Talvez não fosse uma heroína, mas um anjo de guarda. Talvez…

Não sei o que aconteceu, naquele sexto andar, naquele dia, porém sei que, desse dia em diante, até ser muito velhinha, todas as segundas-feiras, a vizinha do 6º B saía de casa, às 6 horas, transportando consigo um saco de livros para ir fazer sorrir muitas crianças que viviam com o peso da doença, que, por momentos, desaparecia e voava para bem longe. E fazia-o porque, naquele mundo, no mundo que aquela mulher ia reinventando, enquanto contava histórias de encantar, a palavra “doença” não existia, só havia lugar para felicidade, alegria, amor e para momentos cheios de sorrisos afetuosos, aconchegantes seus e delas que ajudavam a percorrer cada degrau de uma difícil vida.

Os sorrisos para a Vida.


Ana Santos, 10ºA

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